Psicóloga fala sobre impactos da Covid-19 na experiência do luto e aponta caminhos para novo cenário

A crise do coronavírus alterou muita coisa na rotina das pessoas e nas formas de organização da sociedade – dos encontros sociais ao trabalho, por exemplo – e um dos impactos apontado por um grupo de pesquisadoras foi a forma de lidar com a doença, o isolamento, a morte e o luto no contexto da pandemia. Em estudo intitulado “Terminalidade, morte e luto na pandemia de COVID-19: demandas psicológicas emergentes e implicações práticas”, elas mostram estes impactos e suas consequências.

A psicóloga do Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago (HU-UFSC), Letícia Macedo Gabarra, que assina o artigo juntamente com Maria Aparecida Crepaldi (Universidade Federal de Santa Catarina), Beatriz Schmidt (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Débora da Silva Noal  (Fiocruz) e Simone Dill Azeredo Bolze (Instituto Familiare), explica que a experiência do luto foi alterada pelas condições impostas pela Covid-19 e é preciso que os profissionais de Psicologia ofereçam suporte para ajudar as famílias a enfrentarem estas novas condições. No HU, os trâmites para os funerais são orientados pela equipe de Serviço Social, que faz parte da Unidade de Atenção Psicossocial, juntamente com a Psicologia.

Nesta entrevista, Letícia Gabarra explica quais são as mudanças vivenciadas pelas famílias na experiência do luto dentro deste novo contexto e aponta alguns trabalhos que são desenvolvidos no HU dentro desta realidade.

O artigo “Terminalidade, morte e luto na pandemia de COVID-19: demandas psicológicas emergentes e implicações práticas” trata de lidar com a morte de pessoas próximas no contexto da pandemia. No que isso difere de demais casos de luto? Que demandas surgiram nos últimos meses e que não existiam antes?

No momento atual, o luto é vivido de forma muito reservada, com poucas possibilidades de contatos pessoais para receber suporte e apoio. Mesmo para os casos de lutos não relacionados à Covid há restrições, tanto durante as internações quanto para os velamentos. Atualmente, os hospitais proibiram a visitação de familiares nas enfermarias e UTI, e isso impossibilita a família acompanhar presencialmente o seu ente querido. Assim, nas UTIs as informações são passadas pela equipe por telefone e, quando possível, realizadas visitas virtuais. Porém, o contato físico e a visita presencial deixaram de existir nesse momento da despedida, podendo dificultar a elaboração do luto. As famílias procuram o Serviço de Psicologia muito angustiadas, com muita ansiedade e tristeza frente à impossibilidade de acompanhar de perto a internação e o falecimento.

As situações de velório ficaram mais curtas e com número limitado de pessoas, dificultando aos enlutados vivenciarem esse ritual e receber suporte social de amigos e familiares, como estavam acostumados em nossa sociedade. Nos casos de falecimento com diagnóstico ou suspeita de Covid, as mudanças foram ainda maiores, com os caixões lacrados e não visualização do seu ente querido, e familiares em isolamento com diagnóstico ou suspeita de Covid que não podem participar das homenagens e despedidas, por medo de contaminar outras pessoas e ter mais perdas.

Que formas alternativas um profissional de saúde pode oferecer para a experiência do luto/terminalidade no contexto da Covid?

O contato telefônico da equipe de saúde com a família tem sido mais frequente, de forma que os profissionais têm oferecido escuta e apoio nessas interações.  O Serviço de Psicologia tem realizado a visita virtual quando possível para que a família e o paciente tenham contato através da tecnologia. Disponibilizamos às famílias a possibilidade de envio de áudios e vídeos para o paciente, inclusive para pessoas intubadas, sedadas, e em situações de terminalidade. Compreendemos que as famílias se beneficiam e se sentem mais próximas do seu ente querido ao poder enviar mensagens, ter uma despedida de uma nova forma, poder agradecer, pedir desculpas e desculpar, resolver questões não resolvidas ou não ditas previamente. Fazemos atendimentos psicológicos por telefone, nos quais realizamos diversas intervenções: a preparação para a possibilidade de perda, sensibilizamos para comunicação intrafamiliar sobre o adoecimento e morte para favorecer o apoio mútuo, estimulamos a expressão dos sentimentos relacionados com o luto, oferecemos suporte psicológico, orientamos rituais de despedidas.

Uma das características do brasileiro é justamente a valorização do contato humano, do abraço, do carinho físico, e os meios virtuais, supostamente, são exatamente o contrário: mais frios, sem interação física. Como sugerir a substituição de uma interação entre máquinas para compensar esta dificuldade de contato físico entre as pessoas numa situação de despedida?

Esse momento tem exigido de todos adaptações para podermos lidar da melhor forma com esse novo contexto. Assim, o uso de tecnologia, que poderia ser considerado algo frio e sem interação, passou a ser valorizado e transformou-se em uma interação com muito afeto entre as pessoas, uma forma de aproximação real apesar da distância física. Claro que não substitui o contato físico, mas oferece a possibilidade concreta de “estar junto” com o seu ente querido em situações delicadas como a internação, adoecimento e morte.

Esta situação de pandemia impôs mudanças nestes rituais de despedida. Na sua opinião, haverá impacto no futuro? Ou seja, é possível que, após a pandemia, alguma coisa destes “novos rituais” permaneça?

O impacto de todas essas mudanças ainda é dificil de ser mensurado, porém acreditamos que haverá repercussões psicossociais. Justamente por isso entendemos que essas novas formas de intervenção psicológicas podem minimizar possíveis danos à saúde mental das pessoas. A atuação da Psicologia mostra-se fundamental nesse momento de pandemia, e em situações de adoecimento e terminalidade.

Muitas formas de rituais foram criadas, inclusive em páginas de internet, nas redes sociais, assim como a transmissão ao vivo de velórios, rituais religiosos de homenagem ao falecido. Acredito que isso poderá permanecer mesmo após o fim da pandemia, como possibilidades de aproximar as pessoas que por alguma razão não podem estar presentes fisicamente.

Nos grupos familiares, sempre há uma ou outra pessoa que consegue lidar melhor com as situações de despedida e acaba organizando e dando suporte para os demais familiares. Que sugestões a senhora daria para esta pessoa? Como “ser forte” e ajudar os demais parentes a enfrentar uma notícia de morte e suas consequências?

Geralmente nas famílias tem um porta-voz para receber a notícia do falecimento e informar os demais familiares e isso pode dar a impressão equivocada que a pessoa não está em sofrimento. O luto pode ser sentido e expressado de diferentes formas, como com sentimentos de tristeza, raiva, irritação, isolamento, entre outros. O importante é que todos tenham espaço no ambiente familiar e social para expressar o seu luto, sem julgamentos e rigidez.

O sofrimento com a perda de um parente muitas vezes se prolonga. Onde procurar ajuda e que tipo de ajuda pode ser oferecida para estas pessoas?

O Serviço de Psicologia do HU costuma monitorar as famílias enlutadas um tempo após a perda, para avaliar possíveis lutos complicados ou outras questões específicas de saúde mental. Em situações que se considera necessário o acompanhamento em saúde mental, realizamos os encaminhamentos para Rede de Atenção à Saúde, Clínicas Sociais de atendimento psicológico e outras frentes, conforme a necessidade.

Além disso, nesse período da pandemia, temos uma Central de Acolhimento Psicológico, que funciona de segunda a sexta-feira das 8 às 17 horas, com atendimento telefônico da comunidade em geral e funcionários. Nesse acolhimento telefônico, quando necessário, é realizado encaminhamento para o atendimento psicológico online com um grupo de psicólogos voluntários para esse período.

Há relatos de que famílias e pessoas próximas de vítimas fatais de Covid-19 tenham sido discriminadas (até porque existe esta situação de contágio e pouco conhecimento sobre a ação do coronavírus). Existe alguma forma de lidar com isso?

Realmente, as famílias enlutadas em situações de Covid têm vivenciado outros sofrimentos além da perda, o preconceito, exclusão social, retaliações. Acredito que essas famílias precisam receber o suporte de toda a equipe de saúde com acesso às informações e esclarecimentos, bem como suporte emocional e psicológico. As mídias têm papel fundamental para esclarecimentos, informações claras para toda a comunidade, para manutenção das medidas de isolamento e proteção, bem como para desenvolvimento de empatia e apoio frente às pessoas que têm o diagnóstico de Covid e as famílias enlutadas.

Unidade de Comunicação Social HU-UFSC